quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

ponto final
















Gosto muito de reticências, pelo espaço que elas criam entre as palavras, por nos permitirem respirar e porque naquele breve momento todas as possibilidades estão em aberto...
Contudo a vida é feita de ciclos, mais ou menos descontínuos, onde só o ponto final permite iniciar novos parágrafos.

Aqui   http://asnovenomeublogue.clix.pt/…/como-um-lema-de-vida_29... encontrei esta reflexão que me fez sair do sofá, fez-me querer.
Hoje estas foram as palavras certas para mim.

"Dás o primeiro passo e a vida ajuda-te a fazer o resto. Dás o salto e a rede aparece. Pões aquele ponto final e abre-se um novo parágrafo. Perdoas os erros e a vida torna-te mais paciente.
Mantens os pés firmes no chão e encontras o teu caminho. Amas de forma livre e vives o amor para o resto da vida.
Cuidas mais de ti, por ti, e aprendes a praticar o desapego. Percebes que o que os outros pensam de ti não define quem tu és e deixas te preocupar com o que não tem fundamento.
Sabes que é o silêncio que confunde e conjugas a serenidade na primeira pessoa do plural. E, no final, a vida ensina-te que é ela o princípio e o fim de todas as coisas."

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

o caminho da manhã


A beleza dum texto simples, duma grande escritora


Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos: mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o  branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.

Sophia de Mello Breyner Andresen («O Caminho da Manhã», 1962)